11 de mai. de 2015

Brasil: um Estado de exceção não-declarado

A democracia para além da participação popular na tomada das decisões políticas, exige limites ao poder e a concretização dos direitos fundamentais.


O lugar que uma época ocupa no processo histórico, como percebeu Kracauer em O ornamento da massa, pode ser identificado a partir daquilo que foi desprezado (“O conteúdo fundamental de uma época e seus impulsos desprezados se iluminam reciprocamente”[1]). A verdade de uma época está inscrita em seus conteúdos rejeitados, naquilo que é desprezado ou se quer ocultar, nos efeitos dessa rejeição na realidade, nunca no dever-ser ou no discurso oficial.

Hoje, é a Constituição da República e, em especial, os direitos e garantias fundamentais que aparecem como o principal conteúdo rejeitado pelo sistema de justiça de nossa época. Os direitos fundamentais não são percebidos como trunfos contra a maioria ou como garantias contra a opressão do Estado. Ao contrário, de norte a sul do país, com amplo apoio dos meios de comunicação de massa, os direitos e garantias previstos no ordenamento jurídico integram o imaginário dos atores jurídicos como obstáculos à eficiência repressiva do Estado ou ao mercado. A verdade de nossa época está inscrita no desrespeito à Constituição da República, no fato do discurso oficial reservar o afastamento de direitos e garantias para situações excepcionais enquanto a funcionalidade real do sistema de justiça revela que o que era para ser exceção transformou-se em regra, pelo menos para determinada parcela da sociedade. O sistema de justiça penal construído no plano discursivo a partir do mito da igualdade revela-se no dia-a-dia seletivo, voltado para os indesejáveis (e, aqui, as exceções servem apenas para confirmar essa regra), aqueles que, ao longo da história, forjaram o que Benjamin chamou de “tradição dos oprimidos”; mais do que proteger bens jurídicos, o sistema de justiça serve ao controle social e à manutenção das estruturas sociais (manutenção da forma Estado Capitalista).

A violação de direitos torna-se a regra em desfavor de determinadas pessoas. É assim para quem não interessa à sociedade de consumo (por não ser necessário ao processo de produção ou não dispor de capacidade econômica para consumir), para quem incomoda as elites (aqui entendidas como a parcela da sociedade que detém o poder político e/ou econômico) e para quem desequilibra em favor do oprimido a relação historicamente marcada pela vitória do opressor. Em todos esses casos, pode-se, com Benjamin, em sua tese VIII “Sobre o conceito de história”, afirmar que: o “estado de exceção” em que se vive é a regra; a violação da normatividade constitucional se torna a regra.

Em recente artigo, Tarso Genro revela preocupação com um “estado de exceção não declarado”, capaz de bloquear o direito de defesa, potencializar a corrupção sistêmica e comprometer a democracia. Nesse texto, o jurista gaúcho abandona concepção anterior, marcada por uma perspectiva otimista de evolução da sociedade em direção aos avanços civilizatórios e à democracia, para realçar os crescentes riscos de um grave retrocesso que pode resultar no fim da própria democracia brasileira.

A democracia, em sua concepção material, para além da participação popular na tomada das decisões políticas, exige limites ao exercício do poder e a concretização dos direitos fundamentais. Assentada essa premissa, o quadro e as perspectivas descritos por Tarso Genro são desoladores (por evidente, para aqueles que defendem o projeto constitucional de vida digna para todos). Ganha corpo na sociedade brasileira, com grande força entre os atores jurídicos, uma concepção de atuação no mundo-da-vida avessa a limites (sempre em nome dos “interesses da nação”, do “combate à corrupção”, da “segurança pública”, dentre outros significantes que gozam de “anemia semântica”, para utilizar a expressão de Alexandre Morais da Rosa, mas são instrumentais aos novos “guardiães do direito”[2]) e que naturaliza a violação de direitos fundamentais.

Vários atores jurídicos passaram a defender abertamente (provavelmente, Gilberto Felisberto Vasconcellos está correto ao afirmar que, em breve, o golpe de 64 vai ser perdoado e aplaudido) a manutenção de prisões ilegais e desproporcionais, a produção e aceitação de provas ilícitas, a utilização da prisão cautelar como instrumento de coação à obtenção de confissões e/ou delações, a violação da dimensão probatória do princípio da presunção de inocência (contra a ordem constitucional, o imaginário autoritário atribui ao acusado o dever de provar sua inocência), dentre outras violações da dimensão de garantia que se extrai do texto constitucional.

Em que pese o acerto da análise em relação ao risco existente, Tarso Genro insiste em uma concepção otimista de que essas distorções apontam para um “Estado de Exceção”, na medida em que antes existia um quadro de normalidade democrática na seara do sistema de justiça criminal. Não há Estado de Exceção, ou em termo benjaminiamos, na tradição dos oprimidos, o Estado de Exceção é a regra.

Há uma tradição autoritária, uma historicidade, uma pré-compreensão que condiciona a atuação dos atores jurídicos e leva à naturalização do que deveria ser exceção, que não foi rompida com a Constituição da República de 1988 (um texto, um evento fundamental, que precisa ser levado em consideração, mas que, por si só, se revela incapaz de produzir normas adequadas ao projeto constitucional, isso porque a norma é sempre produto do intérprete, que, no caso brasileiro, está inserido em uma tradição incapaz de “compreender” – aqui compreender é aplicar, nos termos da lição gadameriana – o texto tendencialmente democrático).

Somada a essa tradição autoritária (que programas de redistribuição de renda são incapazes de romper), um complexo de fatores, com especial destaque para o empobrecimento do imaginário, com a consequente redução do pensamento ao modelo binário-bélico de ver o mundo (amigo versus inimigo, bem versus mal, etc.), e a transformação do simbólico (o enfraquecimento da função do limite), o sistema de justiça criminal, essa trama simbólico-imaginária, passou a se caracterizar, no campo do direito material, pela prevalência, ainda que inconsciente, de uma visão empobrecida da teoria do direito penal do inimigo (com uma ampliação – inimaginável para o neocontratualista Jacobs – do âmbito das pessoas etiquetadas de inimigo) e, no processo penal, pela espetacularização, na qual se dá o primado do enredo (dirigido pelo juiz e que, não raro, visa agradar a opinião pública ou o desejo das corporações midiáticas, as mesmas que constroem versões e fabricam heróis para a massa) sobre o fato, com a simplificação do caso penal posto à apreciação do Poder Judiciário, instituição que na busca de legitimidade democrática cede à tentação populista.

Enfim: a) saúdo o retorno do jurista Tarso Genro à produção crítica sobre o direito; b) registro posição no sentido de que a categoria Estado de Exceção se mostra insuficiente para dar conta das distorções hermenêuticas que ameaçam fazer da democracia brasileira um mero simulacro; e c) convido a todos para o debate.

Rubens Casara é Doutor em Direito, mestre em Ciência Penais, professor do IBMEC/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano. Junto a Marcelo Semer, Márcio Sotelo Felipe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.




[1] KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. Trad. Carlos Eduardo Machado. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 91.
[2] Sobre o tema: MÜLLER, Ingo. Los juristas del horror: la ‘justicia’de Hitler: el pasado que Alemania no puede dejar atrás. Trad. Carlos Amando Figueredo. Alvaro Mora: Bogotá, 2014.

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