30 de nov. de 2016

Sinto pena de quem trabalha na Faria Lima, diz urbanista dinamarquês

"Sinto pena de quem trabalha aqui", diz o famoso urbanista dinamarquês Jan Gehl, 80, ao ser apresentado à Nova Faria Lima, região que abriga um dos corações financeiros da cidade, na zona oeste de São Paulo. Olha consternado para os edifícios envidraçados "inteligentes".



"A cidade se faz na altura da calçada, onde as pessoas estão. Cadê um café, mesinhas na calçada, bancos para se sentar, para namorar? Cadê as lojas, as vitrines? Não há um único estímulo visual", prossegue, inconformado.

Jan Gehl, 80, na ciclovia da av. Brig. Faria Lima, na zona oeste de SP Photo by: Marcus Leoni/Folhapress
Desde os anos 1960, critica o modernismo que originou Brasília e os bairros exclusivamente comerciais ou residenciais. Virou pop quando, na última década, ciclovias e calçadões passaram a se espalhar pelo mundo.

Gehl repara que todas as enormes torres da avenida Brigadeiro Faria Lima são de escritórios. "Não há um único apartamento nessas torres todas? Imagino o que acontece quando esta multidão sai do trabalho e todos pegam o carro porque moram longe. Que desespero."

Autor do projeto que tirou várias pistas para automóveis na Times Square e na Broadway, em Nova York, é criticado por colegas por se basear em cidades europeias de pequena escala.

Mas, depois de 40 anos lecionando, criou uma consultoria que ajuda de prefeitos a grandes incorporadores. Tem trabalhos em Moscou, Toronto, Melbourne e até uma reforma, não executada, para o vale do Anhangabaú.

A Folha convidou o urbanista para conhecer bairros que concentram boa parte do PIB paulistano, inclusive aquele onde mora o prefeito João Doria (PSDB), o Jardim Europa, na zona oeste.

NA FARIA LIMA
Os funcionários são mais produtivos se estão felizes. Dá para ser feliz aqui? Onde esses empresários estão com a cabeça? O que há para se ver aqui? Para ficar, usufruir?
Olha ali, os fumantes são os privilegiados. O fumódromo fica no térreo, é uma chance de ficar ao ar livre, de ver gente diferente passar, de espontaneidade. Coitado de quem não fuma.

'ANTIGO' ITAIM
Estou vendo as pessoas saírem das torres de escritórios e irem caminhando para almoçar no lado de lá [na parte não "modernizada" do Itaim, próximo à av. Horácio Lafer e a av. Faria Lima ]. Tem predinhos, casas, restaurantes no térreo. É o velho urbanismo dando uma lição na modernidade.
Quando pedestre tem que dar uma volta enorme para sair do próprio prédio em que trabalha porque a saída dos carros é mais central, há algo muito errado.

NA VILA OLÍMPIA
Quanta mesmice. Você passa bairros e mais bairros e tudo parece igual. Não há um marco, algo que diferencie ou que dê identidade. Um bom espaço público. Esses jardinzinhos na entrada dos prédios não servem para nada, nem para sentar.
As ciclovias são estreitas! Vocês reduziram canteiros para não reduzir faixas para carros? Parece pecado mortal aqui reduzir espaço para
automóveis, mais importantes que o verde.

NA BERRINI
Aqui você vê o capitalismo forte, não faltou dinheiro para construir essas torres, mas há sinais de uma liderança muito fraca e um planejamento muito pobre. A prefeitura parece se limitar a dar alvarás e cada um constrói o que quiser no lote. Não há a menor coerência.

NO PARQUE CIDADE JARDIM
Como é a vida de crianças e idosos nesses prédios? Imagina um cachorro que more aí? Pobrezinho. O morador pega o elevador e ao chegar no apartamento diz "ufa!, cheguei". É uma fuga, um esconderijo. Só há dois tipos de pessoas que se beneficiam dos arranha-céus: quem mora nos últimos três andares e quem vive a 5 km de distância e desfruta o "skyline".
Paris e Barcelona são mais densas que Nova York e quase não têm arranha-céus. Têm edifícios médios, de oito andares, colados um ao ao outro, sem recuo na entrada. E se permitem ter pátios ou jardins no coração da quadra.
É um mito que densidade se faz com prédio alto. Aqui vocês têm recuos na frente, atrás e dos lados, criando espaços inúteis.

NO JARDIM EUROPA
Essas casas parecem prisões. Os muros são tão altos e ainda colocam cercas elétricas em cima. Não sou especialista em segurança, mas duvido da eficácia dessas fortalezas.
Me sinto seguro quando meus vizinhos podem olhar
o que acontece na minha casa e chamar a polícia se suspeitarem de algo. Isolados dessa forma, quem vai conseguir ver uma invasão?
Claramente vocês precisam focar e resolver esse problema de segurança. É muito difícil valorizar o espaço público em uma sociedade com medo. As cidades americanas eram muito violentas nos anos 1980 e deram um jeito. Estudem com eles.

NO JARDIM AMÉRICA
Já atravessamos um quilômetro e só vi guardas e empregados das casas na rua. Tem criança morando aqui? Não é um bairro saudável. Sério que lutaram para impedir comércios e outros usos nesse bairro? Não acredito. Quem não quer tomar um cappuccino na esquina de casa e ver gente passar? Somos animais sociáveis, queremos ver gente. Mas as calçadas têm obstáculos demais. Muitos postes, muitos buracos, interrupções.

VELOCIDADE E SEGURANÇA
Quase todas as ruas têm mão única, o que é mau sinal. Em Copenhague, conseguimos fazer com que quase todas tenham mão dupla. Isso faz com que os motoristas andem mais devagar, aconteçam menos acidentes, e seja mais fácil de se atravessar.
Esse sinal vermelho piscando enquanto é ainda o momento do pedestre atravessar eu chamo de "corra, mamãe, corra". Assusta o pedestre e mostra quem é que tem prioridade: o carro.
Acontece em cidades com muito engenheiro de trânsito, mas nenhum para pedestres.

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