Por Miguel do Rosário
A frase mais emblemática deste ano tão infeliz de 2016, na minha opinião, foi proferida pelo ministro Dias Toffoli, ao final de março de 2016, alguns dias depois daquela votação bizarra na Câmara Federal, que aprovou o impeachment da presidenta Dilma Rouseff: "as instituições estão funcionando normalmente".
O próprio Toffoli é um dos personagens mais emblemáticos desse período da história brasileira: nomeado por Lula para o Supremo Tribunal Federal (STF), não demorou muito para virar a casaca e se tornar um quadro obediente e submisso aos ditames da direita golpista (leia-se Globo).
Sua afirmação cumpria objetivos bastante racionais e previsíveis: blindar-se, agradar à mídia, chancelar o golpe, nesta ordem.
Se pusermos de lado a questão moral, na verdade, o comportamento das autoridades brasileiras é bastante compreensível. Como resistir às agressões da mídia a qualquer autoridade que fuja de seu script e se comporte de maneira independente?
Lembro-me que Luis Roberto Barroso, logo no início de sua gestão como ministro do STF, deu uma entrevista à Globo na qual dizia que o médico de sua esposa, durante uma consulta, havia lhe dito que "não concordava" com as posições de seu marido.
Claro que isso não se compara com a pediatra gaúcha que se recusou a tratar uma criança - e não teve a vergonha de confessá-lo - porque a mãe desta era filiada ao Partido dos Trabalhadores.
No fundo, porém, é a mesma coisa. O fascismo tomou conta da elite brasileira.
Imagina se um pediatra supostamente de esquerda se recusasse a tratar de uma criança e admitisse que a razão da recusa era o fato da mãe desta ser filiada ao PSDB?
No dia seguinte, tvs, jornais e rádios, todo o sistema de comunicação entraria em guerra contra o médico (com razão, aliás), e as instituições agiriam duramente para que este pedisse desculpas à mãe e à sociedade.
Mas não houve nada.
O sistema de comunicação do Brasil se tornou um partido político de ultra direita, que trabalha dia e noite para inflar qualquer manifestação conservadora e omitir as suas enormes franjas fascistas.
O Brasil não está refletindo sobre si mesmo.
Não vejo ninguém falando, por exemplo, que Bolsonaro lidera - em alguns cenários de maneira isolada - entre as faixas de renda mais ricas e que, nessas marchas coxinhas, ele é um dos poucos políticos que transita com unânime aprovação.
O judiciário brasileiro nunca bateu bem da cabeça, mas nos últimos tempos seu comportamento se tornou perigoso.
Não podemos nos enganar, porém. O principal elemento de desequilíbrio no país é o grupo Globo. Não há nada parecido em nenhum país democrático.
Você vai nos Estados Unidos, e há vários canais, nacionais e locais. Nenhum deles tem hegemonia. Nenhum deles tem o poder de pautar, sozinho, a agenda política nacional.
Choca-me o nível de ignorância e omissão da esquerda brasileira, nesses anos todos, sobre os perigos de uma concentração midiática tão brutal.
Neste sentido, a esquerda tem muita culpa sobre a crise institucional vivida hoje pelo Brasil. Lula, Dilma e o PT se omitiram de uma maneira inacreditável.
Dilma passou todo o primeiro mandato fugindo do tema mídia. Quando falava, repetia apressadamente, com medo, banalidades sobre "controle remoto". Perto das eleições, quando era obrigada a dar satisfação a seu eleitorado, encontrou uma maneira supostamente esperta de abordar o tema: dizia que a concentração não era saudável para nenhum setor da economia, comparando comunicação social com produção de biscoito.
Ora, a gravidade da comunicação social, e da concentração desta em poucas mãos, é sobretudo a relação que guarda com a deterioração do processo democrático!
O Brasil, se quiser encontrar uma solução para essa crise eterna em que se enfiou, terá de enfrentar o monopólio da mídia, que se tornou o principal fator de instabilidade política no país.
A instabilidade política contaminou as instituições, enfraqueceu algumas, fortaleceu outras, trouxe o golpe e com ele a repressão, a perseguição, a insegurança, a desesperança, o desespero.
O golpe nos deixou à beira de uma convulsão social, o que é particularmente perigoso num momento em que setores enormes da população abraçam teorias fascistas.
Outro fator de instabilidade, muito associado à mídia, é a Lava Jato. Até hoje a esquerda não sabe lidar com a narrativa da luta contra a corrupção. A mídia, triunfante, reina absoluta. Lava Jato tem 96% de apoio, diz o Datafolha, e a esquerda abaixa a cabeça, intimidada. Sua esperança - e isso é tão bizarro - parece se concentrar no apocalipse político: prendam todos e alguns de nós, puros, sairemos ilesos.
É muito frustrante constatar que parte importante, quiçá majoritária, da esquerda ainda aposta em soluções penais para a crise política: que mais um tucano seja delatado, que a delação da Odebrecht prejudique tucanos, que Sergio Moro prenda alguns emplumados.
Até mesmo a defesa de Lula, embora tenha adotado até hoje a estratégia mais inteligente até agora, já andou criando essa armadilha para si mesma: desafiando Moro a prender um tucano para provar que é imparcial.
Ora, prender tucanos não muda nada! O que importa é a narrativa.
Com a grande mídia controlando a narrativa, Sergio Moro pode prender uma chusma de tucanos que, mesmo assim, a população ainda vai continuar acreditando que o único culpado pela corrupção é o PT.
A deterioração política do Partido dos Trabalhadores tem algo de bíblico. Até hoje, com tudo que aconteceu, lideranças presas, perda de 60% dos votos, Lula perseguido, a legenda não promove um mísero seminário para discutir a relação entre mídia, direito e o golpe. O think tanks do PT, a Fundação Perseu Abramo, vive num mundo à parte: nunca produziu um conteúdo, um texto, um vídeo, para contribuir nessa desesperada luta política que travamos há anos contra a mídia.
E ninguém critica isso.
A única maneira de salvar o Brasil da loucura institucional é através do investimento em cultura. A cultura é o único bem que sobrevive a todas as crises. A Divina Comédia, de Dante, foi escrita no momento mais dramático da Itália e do próprio campo político ao qual pertencia o poeta. Seu partido, os guelfos, havia sido derrotado em Florença. Os adversários, assim que tomaram o poder, armaram imediatamente uma série de condenações judiciais para expropriar todas as (modestas) propriedades da família Alighieri, condenaram Dante à morte e o forçaram a viver exilado o resto de sua vida, suplicando favores dos ricaços da época. Mesmo nessas condições, Dante escreveu uma das maiores obras-primas da humanidade. Quase na mesma época, Leonardo da Vinci e Maquiavel produziram obras imortais.
Meu ponto é o seguinte: o Brasil precisa investir em cultura. Precisa estudar mais, ler mais, se informar melhor, porque, quando cada vez mais a crise se voltará para o que existe de valor na sociedade, como quem procura uma bóia de salvação.
Cultura e política são inseparáveis. Mas o tempo da cultura é diferente do tempo da política. Por isso a política precisa se pensada a longo prazo, e a cultura precisa incorporar a vibração, o entusiasmo e mesmo o desespero da política. Unidas, cultura e política geram uma energia de potencial atômico que pode arrostar qualquer golpismo.
A salvação do país não está, definitivamente, nas instituições, mas apenas nos brasileiros. Esperar bom senso da mídia, é estupidez.
No entanto, é evidente que a mídia é necessária. Ela é como o oxigênio. Sozinha, é um elemento explosivo e tóxico. Temperada pela política, pela democracia, pela pluralidade, pelo bom senso, se torna ar puro, a mais poderosa ferramenta de liberdade já inventada pelo homem.
Apenas o bom senso pode redimir o país e ele não precisa ser de esquerda ou direita. Precisa apenas ter compromisso com alguns valores básicos: soberania, desenvolvimento, emprego e democracia.
Nos próximos posts, vamos começar a discutir estratégias voltadas para a construção de uma plataforma eleitoral possível para 2018.
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