17 de mar. de 2017

Textos antigos de Fernando Haddad na imprensa

- "Um ato expropriatório", janeiro de 2003, revista Reportagem
- "Ainda o PSDB", Folha de São Paulo (FSP), 14 de maio de 2002
- "PSDB e PFL", FSP, 25 de abril de 2002



PSDB e PFL
------------
25 de abril de 2002, FSP

A ciência política quantitativa já havia feito a conta: quase metade dos quadros do PSDB era egressa da antiga Arena, partido que deu apoio à ditadura militar. Contudo ninguém se atrevia a dizer que o PSDB pudesse estar à direita de um partido nascido das entranhas da própria ditadura, o PFL. Foi o que fez Roberto Mangabeira Unger, na recente defesa de uma aliança entre PFL e Ciro Gomes:
"Direita antinacional, anti-social e anti-republicana é hoje o PSDB, tanto na orientação econômica quanto na prática política. O atual governo sacrificou as exigências da produção e do trabalho às conveniências do dinheiro vadio. Também nas práticas políticas é o PSDB que merece hoje o título de direita. Nada nos hábitos clientelistas das outras forças conservadoras se iguala à coerção e à sujeira que emanam hoje do Palácio. E o PFL? É o PSD de hoje: confederação de chefias locais. Não tem vínculo orgânico com a linha de Wall Street e de Washington. A maior parte de suas lideranças preservou o sentimento do nacional e da identidade de seus Estados dentro da Federação. As práticas atrasadas que persistem nele, como em todos os partidos brasileiros, são falhas menores" (Opinião, pág. A2, 3/4/02).
O problema dessa avaliação é que ela procura situar o PFL e o PSDB no espectro ideológico sem considerar a evolução histórica dessas forças políticas.
Perguntar pelo PFL é perguntar pelo seu fundamento. O fundamento do PFL é o patrimonialismo moderno, ou seja, a percepção socialmente motivada de que, nas condições brasileiras (e não só brasileiras), a posse do aparato estatal (a Sudam, a Sudene, o BNDES, o controle ativo e passivo das concessões etc.) é fonte garantida de renda.
Por ocasião do processo de democratização, apesar de quadros do PFL aderirem ao PSDB, esses partidos mantinham uma certa distância política um do outro, em parte pelas dúvidas suscitadas no primeiro sobre a origem oposicionista deste último, ele próprio uma dissidência do PMDB no momento de sua pefelização. Contudo foi graças ao fato de se manterem distintos que o PFL não só garantiu a sua sobrevivência espiritual, como, nos governos tucanos, adquiriu seu desenvolvimento máximo.

O tucano foi, desde o primeiro momento, o pefelista teórico; e o pefelista é o tucano prático

Assim, o PFL não se tem conservado apesar da história, mas por intermédio dela. Os governos tucanos engendram constantemente o espírito pefelista.
Contudo, cabe a pergunta: O que faltou ao PFL para se desenvolver como força política autônoma?
Ganhar autocompreensão teórica.
Mas por quê?
Porque a concepção do mundo patrimonialista é limitada por natureza. O PFL não podia, pela sua essência, consagrar-se teoricamente, mas somente na prática, pois a prática dos negócios do Estado é sua verdadeira e única essência. Não podia, também, criar algo de completamente novo, mas somente atrair as novidades à órbita de sua engenhosidade, porque o patrimonialismo, cujo motor é a gestão auto-interessada do Estado, se conduz passivamente e não tem a faculdade de se ampliar, a não ser pelo desdobramento natural da dinâmica social.
O patrimonialismo atinge seu apogeu com o atual modelo de privatizações. O que o concessionário almeja no Brasil não é lucro, mas renda, mais-valia sem risco. E muitas vezes adquiriu a concessão com dinheiro público emprestado a juros subsidiados. Isso só poderia ocorrer sob um governo tucano. Somente sob o tucanato, que converte todas as relações regionais em relações nacionais externas, podiam-se suplantar os interesses oligárquicos pelo patrimonialismo genérico.
O tucano foi, desde o primeiro momento, o pefelista teórico; e o pefelista é o tucano prático. O tucanismo é o pensamento sublime do pefelismo, assim como o pefelismo é a aplicação prática e vulgar do tucanismo. Essa aplicação só poderia chegar a ser geral quando uma força política levasse a termo, teoricamente, a auto-alienação do Estado de si mesmo. Quando o tucanato, no poder, se tornasse prático.
O PFL, portanto, carece de transcendência. Poderá reencontrá-la no drama, na comédia ou no épico; respectivamente, no maduro ninho tucano, na graça de um garotinho sobrenatural ou num jovem enérgico, saído de suas hostes, preparado para o salto rumo ao universal (Collor, Luis Eduardo, Roseana ou... Ciro?).
O pefelismo só se tornará impossível quando a sociedade conseguir acabar com a essência empírica do patrimonialismo, ou seja, quando o Estado e os cidadãos se tornarem repúblicos. O pefelista será impossível porque sua consciência carecerá de objeto.
Se quiser ter um grande destino, essa deverá ser a tarefa histórica do PT.

Ainda o PSDB
--------------
14 de maio de 2002, FSP

A reação do vereador Ricardo Montoro ("O PT e a síndrome de Sassá Mutema", pág. A3, 3/5) ao meu artigo "PSDB e PFL" (pág. A3, 25/4) é sintoma da crise momentânea do pacto condominial que governa o país há anos. Essa crise reforça a percepção dos tucanos: pensam ser a superação do atraso, quando são a sua mais moderna tradução.
Comecemos pela crítica teórica. O vereador sugere, de forma irônica, que eu utilizo um conceito contraditório (sic), o de "patrimonialismo moderno", para caracterizar a forma atual de organização do Estado.Tomemos os oximoros "capitalismo e escravidão" (sic) ou "dependência e desenvolvimento" (sic). Essas expressões contraditórias são títulos de livros de um sociólogo que, reconhecidamente, ajudou a entender melhor o Brasil. Mais dedicação às ciências e menos às telenovelas teria evitado o deslize primário. O vereador não lê o autor que mais recomenda. De qualquer forma, se quiser pistas sobre o significado de patrimonialismo moderno, talvez o recente noticiário sobre a privatização da Vale do Rio Doce possa aguçar-lhe a curiosidade científica.
Deixemos de lado a teoria. O vereador acusa a atual administração municipal de malufismo. Ora, onde se aninha o malufismo? O PPB de Maluf compõe, há oito anos, a base de sustentação do governo federal, ocupa ministérios e inúmeros cargos de segundo e terceiro escalão, ajudou a aprovar a emenda da reeleição etc. A tal reforma do Estado promovida pelos tucanos teve o aval entusiasmado das forças políticas mais retrógradas, inclusive do malufismo, e não consta que essas forças tenham vocação para a autodestruição.
Tucanos, pefelistas e malufistas precisam explicar à nação como, tendo vendido em cinco anos o patrimônio público acumulado em 50, e tendo arrecadado em oito anos o montante de tributos que se recolhia em dez, conseguiram dobrar a dívida pública interna e dobrar o passivo externo líquido ao mesmo tempo em que se produzia o maior desemprego da história e se reproduzia a pior distribuição de renda do mundo.

A tal reforma do Estado promovida pelos tucanos teve o aval entusiasmado das forças políticas mais retrógradas

No plano local, as coisas não se passam de maneira diferente. Por ocasião do segundo turno da última eleição para governador de São Paulo, enquanto Marta Suplicy dava apoio incondicional a Mário Covas, o primeiro mandatário do país compartilhava outdoors com o que havia de mais nefasto na política nacional.
No Legislativo municipal, tucanos e malufistas estão unidos contra a atual administração, tentando impedir a universalização dos programas sociais e a implantação do IPTU progressivo, medidas que visam atenuar a terrível situação da população de baixa e média renda da cidade.
Por fim, enfrentemos de uma vez por todas o debate sobre a questão das verbas da educação:
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que São Paulo é a única cidade do país que compromete 31% das receitas de impostos com educação, sendo que a quase totalidade das demais gasta 25%.
Em segundo lugar, as taxas, sobre as quais não incidem os 31%, têm pouquíssimo espaço no Orçamento municipal, o que significa dizer que, em São Paulo, a base sobre a qual incidem os 31% é comparativamente maior do que em outros municípios.
Em terceiro lugar, diferentemente da maioria das cidades, São Paulo não mais dispõe de 100% da arrecadação de impostos, uma vez que 13% estão comprometidos com o acordo da dívida com a União. Portanto, como de cada R$ 87 disponíveis gastam-se R$ 31 com educação, pode-se dizer que o comprometimento com o setor chega a 35,6% da receita de impostos que efetivamente permanece em São Paulo.
Qual o grande pecado da atual administração? Valer-se de 2% a 3% a fim de garantir à criança transporte, alimentação, vestuário e renda para fixá-la na escola, combatendo a evasão?
Que o governo municipal não consiga se comunicar com a opinião publica, que os partidos que fazem oposição adotem populismo escrachado, tudo isso é parte do nosso jogo democrático. O que não se pode é tolerar o oportunismo. Até por respeito a todas as forças de esquerda que, destemidamente, aprovaram a corajosa iniciativa da prefeita de São Paulo.
É justamente a experiência de São Paulo que demonstra a viabilidade de um governo de esquerda num Brasil atrasado. Aqui tem sido possível, até agora, isolar as forças conservadoras, de um lado, enquanto, de outro, aglutinam-se outras -certamente, com níveis diferentes de maturidade política e consciência histórica-, que, sob a hegemonia de um partido determinado, promovem mudanças na direção da republicanização do Estado.
Patrimonialismo, moderno ou arcaico, opõe-se por definição a "res publica", que ainda não constituímos neste país.

Um ato expropriatório
-----------------------
janeiro de 2003, revista Reportagem

Talvez eu esteja me adiantando demais, enunciando o que é a apenas uma hipótese, tão improvável neste curto espaço. Contudo, a recente vitória do PT, nas eleições presidenciais, desnorteia de tal maneira, que o risco aqui assumido está em compasso com tudo o mais. Em dois artigos de jornal, caracterizei o Estado brasileiro como um Estado patrimonial moderno. Não tendo, porém, naquelas ocasiões, condições de confrontar esta visão do Estado com as muitas interpretações, de vários matizes, sobre a natureza das nossas instituições. Eu não dei ao leitor elementos para saber se eu pretendia dizer algo de novo ou se, finalmente, alguém que se pretende filiado ao marxismo ocidental dava razão à velha tese de Raymundo Faoro, de cepa weberiana, magistralmente exposta em Os donos do poder.

Nesta obra, Faoro observa que “na peculiaridade histórica brasileira, a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal” (p. 834). A comunidade política comanda e supervisiona todos os negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia” (p. 824). Na origem, conduz os negócios como negócios privados seus, depois, como negócios públicos, em linhas que se demarcam gradualmente. A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo tipo de domínio, Faoro chama de “patrimonialismo”.

O mais surpreendente da análise de Faoro é que, para ele, ao contrário do feudalismo, esta forma arcaica de dominação é plenamente compatível com o moderno capitalismo. Enquanto “o mundo feudal, fechado por essência, não resiste ao impacto, quebrando-se internamente, para se satelitizar, desfigurado, ao sistema solar do moderno capitalismo, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do mundo externo” (p.823).

Questão relevante é saber por que jovens marxistas que preparavam suas dissertações no momento em que essa obra veio a lume, não se deixaram influenciar por visão tão intrigante e tão realista sobre a natureza do Estado brasileiro. Acho que posso explicar. Para Faoro, o patrimonialismo moldou a realidade estatal “sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno”. “A realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar” (p.822).

Tudo o que os jovens marxistas do “seminário do capital” queriam provar era justamente o contrário. O passado não incorporava o presente capitalista; antes, o capitalismo moderno se valia de formas arcaicas, dando a elas desígnios ultramodernos. Esses pesquisadores queriam demonstrar o quanto a escravidão no Brasil era moderna, tanto quanto a escravidão americana e a segunda servidão dos Estados danubianos, como havia sugerido o próprio Marx. A reação periférica à expansão do capitalismo central se deu das formas as mais disparatadas. Escravidão, servidão, patrimonialismo e despotismo são formações arcaicas revitalizadas com o objetivo de propiciar a extração primitiva de mais-valia. Em linha com esse pensamento, tudo o que pretendi demonstrar no meu livro O sistema soviético, foi que também esse sistema, a partir dos anos 1930, devia ser entendido a partir dessa lógica. Não se tratava de socialismo, mas da revitalização de seu morfológico irmão decrépito, o despotismo, com finalidades modernizantes, qual seja, produzir capital primitivo. Portanto, se para Wittfogel o sistema soviético seria mera restauração da ordem despótica, para mim tratava-se da instauração do despotismo moderno em reação à expansão (e dentro da órbita) do capital. Com a posterior publicação do livro de Robert Kurz, O colapso da modernização, essa tese ficou numa situação menos isolada.

Dessa ótica, podemos dizer, provocativamente, que Raymundo Faoro é o nosso Karl Wittfogel. Percebeu como ninguém a natureza política do Estado Brasileiro, mas com sinal histórico trocado. Daí por que, numa tentativa de síntese entre seu pensamento e a perspectiva teórica daqueles jovens marxistas, eu preferi utilizar a expressão “patrimonialismo moderno”. É claro que se esta tese se sustenta, os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais precisariam igualmente ser repensados, e não só eles, mas também as extraordinárias teses elaboradas por aqueles que recentemente pretenderam superá-los, respectivamente, José Luís Fiori e Luis Felipe de Alencastro. O núcleo do trabalho acadêmico destes últimos poderia ser compatibilizado com a tese aqui enunciada. Quanto aos seus recentes textos de intervenção no debate público, tenho dúvidas se a maneira como o primeiro utiliza o conceito de dominion, e o segundo, o conceito de mercado, ajuda a entender a realidade atual do Estado brasileiro quanto a sua soberania. Faoro, referindo-se ao velho Portugal, observa que “o reino tem um dominus capaz de gerir as maiores propriedades do país, dirigir o comércio, conduzir a economia como se fosse empresa sua” (p. 38). Não creio que o processo alucinado de privatizações tenha posto um fim a esta ordem de coisas, pelo contrário. Se o Estado brasileiro não é um Estado-nação que se completou, ele é um Estado-concessão plenamente constituído. No Brasil, todos os setores dinâmicos da economia se organizam como concessões, das rádios e tevês aos bancos, passando por todo infra estrutura do país. Mesmo o capital produtivo internacional que queira explorar os serviços concedidos tem que se submeter à intermediação do Estado, que exerce desde sempre sua peculiar soberania.

Ora, um governo de esquerda que se preze, não poderia deixar de atentar para esta realidade. Os críticos do atual governo focam suas análises nos importantes e incontornáveis temas da justiça social e do desenvolvimento econômico. A questão política mais profunda não é tocada. Questão que é menos de natureza democrática do que republicana. Certa ocasião, eu argumentei que, dada a natureza do Estado Brasileiro, a mera chegada ao poder de um partido de esquerda, por si só, ainda que prometesse respeitar todos os direitos constituídos e os contratos celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório. A menos que se pretenda manter intocado o regime atual de concessões, que mantém as estruturas excludentes de poder, isto continua sendo verdadeiro. O nó da questão é que o próprio Faoro alertava para a possibilidade histórica de um patrimonialismo social-democrata que empreenda, em certas circunstâncias, “uma política social de bem-estar, para assegurar a adesão das massas”.

Nesse particular, é elucidativa a composição interna do PT: um ‘centro’ hegemônico social-desenvolvimentista (que, de fato, vai governar o país, em coalizão com outros partidos), uma ‘esquerda’ socialista e uma ‘direita’ republicana. A ‘direita’ e a ‘esquerda’ unidas teriam muito a contribuir para desatar esse nó. De fora para dentro, a partir da militância partidária, poderiam indicar o caminho da republicanização do Estado brasileiro o que, dadas suas características, constituiria um passo decisivo na direção de uma sociedade justa. Dito de outra forma, o ímpeto de uma mudança política definitiva no nosso país poderia vir também de fora do governo, por exemplo, de dentro do partido, que, nesse momento em que novas perspectivas históricas estão colocadas, deveria ganhar vitalidade, e não perder o que resta dela, como usualmente ocorre. O destino do PT é tão importante quanto o destino do próximo governo.

Nenhum comentário: