De: educacao.estadao.com.br
A Universidade de São Paulo (USP) é a melhor universidade da América Latina e um dos melhores exemplos de injustiça distributiva. O ensino na USP é pago. Ela recebe 5,03% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) recolhido no Estado. Quando você compra um saco de arroz está pagando o ensino oferecido pela USP. Como é pago por todos os cidadãos, a USP não cobra diretamente dos alunos.
O público da USP são os estudantes que terminam o ensino médio. O censo escolar do Estado de São Paulo (2014) mostra que existiam aproximadamente 530 mil alunos cursando o terceiro ano do ensino médio, potenciais candidatos a seguir estudos na USP. Desse total, 444 mil (83%) estudam em escolas públicas e 86 mil (17%) em escolas privadas. Portanto, se a chance de ingressar na USP fosse igual para alunos de escolas públicas e privadas, 83% dos 11 mil alunos que ingressaram na USP em 2014 seriam de escolas públicas e 17% de escolas privadas.
Mas a realidade é muito diferente. Em 2014 somente 32% dos ingressantes vieram de escolas públicas, 68% vieram de escolas privadas. Dos 444 mil potenciais candidatos da escola pública, somente 3.520 foram contemplados com uma vaga na USP (0,79%). Por outro lado, dos 86 mil alunos da escola privada, 7.480 foram contemplados (8,6%). Alunos de escola privada tem 11 vezes mais chances de entrar. Sem os pontos bônus recebidos pelos alunos da escola pública essa diferença seria ainda maior. É isso que se chama injustiça distributiva: todos pagam, mas só alguns ficam com o benefício.
O processo de seleção da USP não discrimina alunos da escola pública. A prova é exatamente igual. Na inscrição e na correção das provas, a informação sobre a origem do aluno, sua raça, cor, ou renda familiar não é levada em conta. A única razão para essa enorme injustiça distributiva é o pior preparo dos alunos da escola pública. É simples e óbvio: o ensino público no Estado de São Paulo é pior que o ensino privado. Dada a diferença de poder aquisitivo, os pobres só têm a opção da escola pública e acabam fora da USP. Uma forma indireta de discriminação.
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Essa injustiça distributiva precisa ser corrigida. É correta a meta de incluir mais alunos da escola pública na USP. Existem duas formas de corrigir essa distorção. A escola pública pode melhorar sua qualidade, garantindo que seus alunos passem no vestibular, ou a universidade pode discriminar favoravelmente os alunos da escola pública, dando pontos extras ou garantindo uma fração das vagas para esses alunos.
Esta semana, a USP decidiu pela segunda estratégia: vai garantir um número de vagas crescente para alunos da escola pública até que esse número chegue a 50% em 2021. Não explicou por que não adotou a meta de 83% que seria o matematicamente justo.
Foi uma decisão populista. A universidade optou pela solução fácil e rápida, baixou a régua para os alunos da escola pública, transformou um sistema meritocrático em discriminatório. A partir de agora, dois grupos de alunos ingressarão. Os que sabem mais e os que sabem menos. Se o ensino continuar calibrado para os que sabem mais, os que sabem menos serão abandonados à própria sorte. É difícil ensinar os dois grupos simultaneamente. No longo prazo, a USP será obrigada a segregá-los em classes distintas. O suprassumo da discriminação. Outra opção é abaixar o nível do ensino, o que seria indesculpável, pois a USP determina a altura do sarrafo para todas as universidades brasileiras.
A meta de aumentar a participação dos alunos das escolas públicas deveria ter sido colocada no colo de quem tem culpa pelo problema: os gestores do ensino médio. A sociedade deveria exigir desses gestores uma taxa crescente de aprovação no exame de ingresso da USP. Esse desafio ajudaria a melhoria do ensino público, colocando uma meta concreta, de fácil apuração. De quebra evitaria os problemas de discriminação intrínsecos ao sistema de cotas.
A verdade é que os envolvidos preferiram uma solução que não exige esforço, a dos preguiçosos. Essa decisão, que em última análise é responsabilidade do governo de São Paulo, gestor da USP e das escolas, é um testemunho da descrença na possibilidade de melhorar o ensino público no curto prazo.
Essa descrença não tem razão de ser. Os melhores alunos das escolas públicas são capazes de ingressar na USP. Um experimento que demonstra cabalmente o potencial desses alunos são os resultados do Instituto Acaia no seu programa Sagarana. Faz 12 anos o Acaia seleciona 36 alunos ao fim do segundo ano do ensino médio de escolas públicas da zona oeste de São Paulo. Oferece a eles um ano de curso intensivo com o objetivo de ajudá-los a entrar nas universidades públicas.
As aulas são à noite e aos sábados. Não é cursinho, são três anos de ensino médio em um. Os alunos são selecionados com base em seu interesse, motivação e desempenho escolar. Apesar da carga didática alta, a taxa de desistência não chega a 10%. E agora você vai se espantar. A taxa de aprovação dos alunos do Sagarana nas universidades públicas é de 62,61% (quase 80 vezes maior que os 0,79% de todos os alunos das escolas públicas). Se a esse número você acrescentar as universidades privadas de primeira linha (como a FGV), a porcentagem chega a 73%, e inacreditáveis 94% se incluirmos todas as universidades privadas. O Acaia já colocou 468 alunos nessas universidades, incluindo a Faculdade de Medicina da USP. Imagine a autoestima desses alunos que não dependeram de cotas.
A cada ano entram na USP aproximadamente 3.500 alunos das escolas públicas. Para dobrar esse número bastaria oferecer um programa semelhante a 5 mil alunos da escola pública (1% do total de alunos do terceiro ano). Caso 70% fossem aprovados, dobraríamos em um ano o ingresso de alunos da escola pública na USP. Para atingir essa meta bastariam 100 programas semelhantes ao Acaia Sagarana espalhados pelos municípios do Estado de São Paulo, com 50 alunos em cada programa. Ao longo dos anos esse programa poderia ser estendido a todos os alunos. Ninguém vai me convencer que isso não é factível, falta vontade.
É por isso que acredito que as cotas são uma solução covarde e simplista de quem não acredita que o ensino nas escolas públicas pode ser melhorado e sequer tem a coragem de tentar. Um tiro errado no alvo certo.
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