5 de jun. de 2020

Miguel não caiu. Miguel foi empurrado

Se um coração bate aí dentro, não é pra você continuar bem ou indiferente depois de saber o que aconteceu com Miguel, menino de 5 anos que morreu ao cair do nono andar de um prédio no Recife,enquanto procurava pela sua mãe, Mirdes.

E já nem era pra estar depois das mortes de Ágatha e do João Pedro, também crianças que perderam a vida depois de serem atingidas por disparos de armas policiais, igualmente responsáveis por assassinarem o músico, Evaldo Souza, e o catador de material reciclado, Luciano Macedo, com "acidentais" 80 tiros no ano passado – pra não dizer tantos outros casos.

Só que Miguel não morreu pela brutalidade da força policial. E, acreditem, não foi pela negligência da patroa de sua mãe, Sari Côrte Real, que não teve a paciência para cuidar do filho de sua funcionária por alguns minutos e, assim, conduzi-lo para o caminho que destinou à morte da criança.

Porque não foi um caso isolado. Foi uma coisa montada, construída.

Miguel morreu pela existência de uma estrutura no Brasil que faz uma mulher negra, quase que na obrigatoriedade de uma lei, passear com o cachorro da patroa, enquanto a patroa livra-se da responsabilidade de cuidar filho da mulher negra com a mesma indiferença que descartamos um objeto no lixo.

Por uma estrutura que, mesmo em tempos de pandemia e isolamento social necessário, obrigou Mirdes a continuar limpando o chão dos patrões, mesmo depois do marido de Sari, o prefeito de Tamandaré, Sergio Hacker (PSB), ter afirmado que testara positivo para a Covid-19.

Por uma estrutura que obrigou Mirdes a levar o filho para o trabalho porque as creches e escolas estão fechadas e ela não teria com quem deixá-lo.

Miguel morreu porque, no Brasil, 20 mil reais é o preço que uma pessoa rica paga para responder em liberdade depois de tirar o futuro de uma vida negra.

Miguel caiu do nono andar porque a burguesia despreza as classes pobres. Não as toca. É indiferente, tira sarro e é insensível às vidas que não pertencem ao mundo dela e que não circulam nos mesmos espaços, senão as que estão ali para servi-la.

Uma burguesia que ama se autopromover como humanitária com doações e trabalhos voluntários, mas que torce o nariz para programas sociais do Estado e não vota em governos que propõem planos para diminuir a miséria, a pobreza e a fome.

Não são todos assim, obviamente.

Mas sei que existem pessoas que funcionam desse jeito porque cresci, vivi, vivo e convivo nos biomas das classes média e rica. Já dei risada, joguei bola, estudei, trabalhei e sentei na mesma mesa que elas para comer, e conheci muita gente parecida com a Sardi que minha cabeça construiu.

Só que mesmo vivendo sempre nesse ambiente, não tenho todas as respostas para as perguntas que eu comecei a fazer de uns anos pra cá. E uma delas é: por que os ricos, no bálsamo de uma vida privilegiada e confortável, têm tanto ódio?

Ódio a quê? E ódio a quem?

Por uma criança de 5 anos que, dentro de um repertório de linguagem ainda em construção, só tentava expressar o desejo de estar perto de sua mãe?

Eu não sei.

E um, ou vários deles, empurrou Miguel.

Mas sei que esse ódio, racista e muito brasileiro, existe e tem muitos braços – na polícia, na presidência, na sociedade civil.

#JustiçaPorMiguel


*Caio Possati Campos é psicólogo pela USP e estudante jornalismo na PUC de Campinas.

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