O ex-Brasil grande deu lugar a um gigante que celebra a própria inépcia como um grande feito...
A nudez ambiental brasileira perdeu todo o suspense e todo o mistério. A desproteção da Amazônia submete a floresta à mais despida das épocas. No caso Bruno-Dom, um dos assassinos confessou a participação no extermínio do indigenista brasileiro e do jornalista britânico. Pelado, como é conhecido o bandido, escancarou a indecorosidade nacional num roteiro de sangue e dor. Como é cruel o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, mas que não surpreende ninguém.
A banalidade do mal
O Brasil que pulsa na confissão de Amarildo da Costa Oliveira, o nome que os pais do Pelado mandaram anotar na sua certidão de nascimento, é um país vocacionado para a tragédia. Nele, Bruno Pereia e Dom Phillips foram capturados, mortos, carbonizados e esquartejados num ritual macabro que faz lembrar o fenômeno que a filósofa alemã Hannah Arendt batizou de "banalidade do mal".
Pelado guiou os investigadores até os fundões da floresta, onde havia enterrado o que restara dos corpos, antes de afundar a lancha de suas vítimas. Houve grande alívio em Brasília. Antecipando-se à entrevista coletiva que havia sido convocada no Amazonas, o ministro bolsonarista da Justiça Anderson Torres correu às redes sociais para anunciar o achado que deixou a plateia perdida. Chamou de "remanescentes humanos" o indigenista e o jornalista, que estavam sumidos desde 5 de junho.
Remanescente é o que resta, o que sobra. Estes resíduos humanos não teriam sido encontrados no décimo dia de buscas sem o auxílio do criminoso confesso, admitiu o delegado Eduardo Alexandre Fontes, superintendente da Polícia Federal no Amazonas. Serão agora submetidos a exames de DNA. Confirmando-se o vínculo com Bruno e Dom, os despojos "serão entregues às famílias", anunciou o delegado, com frieza técnica.
O sorriso interior reprimido
Além do chefe local da Polícia Federal, reuniram-se na sala de entrevistas para prestar contas aos repórteres —três deles estrangeiros— representantes do Exército, da Marinha, da polícia civil, do corpo de bombeiros, da secretaria de segurança amazonense... Todos fizeram questão de manusear o microfone.
Dividiram-se entre as condolências aos familiares dos mortos e a exaltação das respectivas corporações. Pareciam estalar de orgulho. Mal conseguiam reprimir uma espécie de sorriso interior. Não evitaram o crime. Mas, que diabo, haviam acabado de encontrar os corpos —ou o que remanesceu deles.
"Todos os esforços foram empregados", disse o delegado da Polícia Civil Guilherme Torres. "Nossa missão precípua desde o início era encontrá-los com vida. Infelizmente trazemos essa triste notícia."
Em meio a relatos sobre o lado imundo de um pedaço do mapa onde o crime se organizou no vácuo da esculhambação do Estado, ouviu-se uma exaltação generalizada à capacidade do poder público de unir suas impotências numa força-tarefa. A demolição ambiental potencializada sob Bolsonaro produziu um fenômeno inusitado: a micromegalomania administrativa. O ex-Brasil grande deu lugar a um gigante que celebra a própria inépcia como um grande feito.
O pior executado da melhor maneira
Há um cheiro de Médici na penúltima tragédia amazônica. Idealizada para integrar o Norte ao resto do país, a Rodovia Transamazônica empurrou o que o Brasil tem de pior para dentro da floresta e dos territórios indígenas. Por mal dos pecados, o brasileiro já se habituou ao crime.
Defensores dos interesses ambientais vêm sendo passados nas armas antes e depois de Chico Mendes e Dorothy Stang. Mas surgiu algo novo e desconcertante. Sob Bolsonaro, o governo fez o pior da melhor maneira que pôde. O Ministério do Meio Ambiente é contra o ambiente. O presidente é o principal aliado dos criminosos.
Já em 2019, primeiro ano do seu mandato, após culpar as ONGs pelo aumento das queimadas, Bolsonaro especializou-se em desqualificar as reservas indígenas. "A Amazônia foi usada politicamente desde o [governo] Collor para cá", declarou o presidente, em reunião com os governadores da região amazônica. "Foi uma irresponsabilidade essa política adotada no passado, usando o índio ao inviabilizar esses estados".
Em matéria ambiental, Bolsonaro notabilizou-se pela previsibilidade. Estava no alvorecer de sua carreira política quando o então presidente Collor assinou, em maio de 1992, o decreto que homologou a reserva dos índios Yanomami. Num pronunciamento de novembro de 1995, o então deputado Bolsonaro declarou:
"Com a indústria da demarcação das terras indígenas, assim como Quebec quase se separou do Canadá, num curto espaço de tempo, os Yanomamis poderão, com o auxílio dos Estados Unidos, vir a se separar do Brasil".
A morte da soberania
Os Yanomamis não se apartaram do Brasil. Mas o Brasil se separou dos seus habitantes originários. Como prometera na campanha de 2018, Bolsonaro não demarcou um milímetro de terra indígena. E providenciou para que as fronteiras das reservas existentes fossem escancaradas para o pelotão da ilegalidade: matadores, desmatadores, mineradores, grileiros e a turma do ogronegócio. Parte dessa gente se presta a lavar dinheiro para traficantes de drogas e de armas.
Ao transferir para o Planalto as alianças e as obsessões que cultivou em 28 anos de baixo clero parlamentar, Bolsonaro fulminou o que restava da respeitabilidade ambiental do Brasil. Bruno Pereira e Dom Phillips não foram as únicas vítimas da nova tragédia amazônica. Junto com eles morreu a falácia segundo a qual Bolsonaro defende a soberania do Brasil sobre a Amazônia.
O capitão, na verdade, consolidou a terceirização da região ao crime. Preso junto com um irmão que ainda não confessou participação nos assassinatos de Bruno e Dom, Pelado é o elo mais frágil da corrente criminosa. Nenhuma investigação será bem-sucedida se não chegar aos mandantes e aos seus contatos políticos.
Há três décadas, o narcotráfico utilizava a Amazônia como rota de passagem. Hoje, o crime possui bases na região —na floresta, nos legislativos e nos palácios. Enquanto o crime prevalecer, toda nudez será premiada.
Josias de Souza
16/06/2022 05h58 de Brasilia
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