De acordo com os resultados obtidos, o dispositivo gerou um impulso bastante modesto, mas, para algo que não usa propelente algum, trata-se de um resultado surpreendente e extremamente animador. No fim das contas, pode vir a ser a tecnologia que viabilizará viagens interestelares, algo que está totalmente fora do alcance dos métodos de propulsão tradicionais — pelo simples fato de que é impossível levar combustível suficiente para realizar a viagem.
Claro, fale para a imensa maioria dos físicos que algo vai se acelerar no vácuo sem uma massa propelente que seja capaz de gerar um jato de exaustão na direção oposta, e eles dirão que isso é impossível, pois contraria as leis da física. Um dos princípios mais elementares é a famosa conservação do momento.
Não, não é quando a gente tira uma foto para ter um momento guardado para sempre. Em física, momento é tão somente a quantidade de movimento, expressa pela multiplicação da massa pela velocidade de um objeto. Em tese, você pode transferir momento de um objeto a outro. Mas as coisas, em tese, não deveriam funcionar se você tenta acelerar sem “roubar” momento de algum outro lugar. Por tudo que sabemos das leis da natureza, não se pode criar mais momento do nada.
Por esse pequeno grande detalhe sempre houve — e continua a haver, sejamos francos — muita desconfiança por trás do conceito, desde que ele foi apresentado, no começo dos anos 2000.
Os próprios pesquisadores da Nasa (liderados por Harold “Sonny” White, chefe do laboratório Eagleworks, instalado no Centro Espacial Johnson, em Houston) mantêm uma postura agnóstica com relação à tecnologia controversa, noves fora os resultados positivos. Em seu artigo, eles listam exaustivamente todas as fontes experimentais de erro que poderiam explicar os resultados. Eles particularmente não acreditam que alguma delas esteja gerando um falso positivo, explicando detalhadamente o que fizeram para mitigar os problemas em seu experimento. Mas também admitem que não podem descartar completamente boa parte delas — e sempre pode ser algo em que eles sequer pensaram. De toda forma, um item dessa lista já pôde ser completamente descartado: o ar não tem participação no modesto impulso gerado.
Os testes foram feitos com a acoplagem do dispositivo a um pêndulo de torção, mantidos numa câmara a vácuo. O motor em si lembra basicamente uma secção transversal de um cone. Em seu interior, uma fonte de energia elétrica gera radiação eletromagnética em micro-ondas (o EM do nome), e é isso que, de algum modo, geraria a propulsão. No experimento, esse dispositivo foi alimentado com eletricidade, com diferentes níveis de potência: 40, 60 e 80 watts. A ideia básica do experimento era medir qualquer propulsão que alterasse o padrão de movimento do pêndulo.
Para se certificar de que estavam medindo mesmo o motor em funcionamento, testes foram feitos para gerar propulsão à frente, para trás e nula (usando, ainda, em outra configuração um peso morto equivalente ao dispositivo ligado ao pêndulo para efeito de controle).
“Os dados de impulso para frente, para trás e nulo sugerem que o sistema estava funcionando com uma taxa de empuxo por potência de 1,2 milinewton (mais ou menos 0,1 milinewton) por quilowatt”, escreveram White e seus colegas.
CERTO. SE FUNCIONA, COMO FUNCIONA?
Há duas formas de responder a essa pergunta, a curta e a longa.
A curta é: ninguém sabe.
A longa é: mesmo entre os entusiastas do EM Drive não há acordo. Um de seus primeiros proponentes, o britânico Roger Shawyer, sempre defendeu que não há mistério e que seu propulsor sem combustível não viola as leis da física.
O que ele diz é que é possível configurar a cavidade (a secção do cone) de forma que um bate-rebate das micro-ondas em seu interior trocasse momento com o fundo do dispositivo, gerando propulsão. A imensa maioria dos físicos — inclusive o pessoal da Nasa — diz que isso não faz o menor sentido.
Contudo, eles também mediram alguma propulsão, e acham que não é erro experimental: precisa ser explicado, portanto.
White, que é formado em engenharia mecânica com doutorado em física, também acredita que o dispositivo não viola as leis da física, mas por outro motivo: segundo ele, o EM Drive interage de uma forma exótica com a energia do próprio vácuo. Uau.
Pois é, foi-se o tempo em que o vácuo era um “nada” puro e absoluto. Hoje sabemos que mesmo o mais vazio dos vazios tem alguma coisa — ele tem energia, ou, mais precisamente, tem a probabilidade, por menor que seja, de não ser vácuo.
Uma das demonstrações mais chocantes da mecânica quântica é que essa probabilidade não é mero artefato teórico. Ela se realiza de fato na natureza, gerando no vácuo um mar de partículas virtuais. Elas são em tudo similares às partículas convencionais, que formam tudo que existe no Universo, com uma diferença essencial: elas aparecem e desaparecem numa fração de segundo e, por isso, não afetam o balanço total de energia do Universo. (Partículas que aparecessem no vácuo e não desaparecessem mais violariam outro princípio de conservação, o da energia.)
Usando interpretações menos comuns da mecânica quântica, White e seus colegas sugerem que o tal EM Drive estaria interagindo com esse mar de partículas virtuais e, de algum modo, é delas, em sua fugidia existência, que o dispositivo “roubaria” o momento para produzir sua propulsão, sem violação das leis físicas.
Faz algum sentido? Hm, ótima pergunta. Se eu soubesse a resposta, poderia me tornar o primeiro especialista reconhecido em EM Drives. Como esse cara ainda não existe, vamos ter de conviver com a dúvida, pelo menos por enquanto.
E O TAMANHO DA REVOLUÇÃO?
Bem, vamos supor que, independentemente de como funcione, o negócio pelo menos funcione de fato. Falamos lá em cima do impulso medido: 1,2 milinewton por quilowatt. Como comparamos isso com outras formas de propulsão mais conhecidas?
Não podemos colocar isso lado a lado com um foguete de combustão química, porque não tem nem comparação. O foguete ganha de lavada. Os ônibus espaciais americanos, por exemplo, tinham um pico de empuxo de 30,1 meganewtons. Saltamos dos mili (milésimos) para os mega (milhões).
Precisamos de um coice desses, como o do ônibus espacial, para vencer o campo gravitacional terrestre. Então você não pode imaginar decolar do chão com um EM Drive — ao menos não com esse desempenho medido. Seria como tentar soprar numa nave para ela subir.
Em compensação, em dez minutos de propulsão o ônibus espacial esgota seu combustível, atinge uma órbita e está à mercê da inércia, sem capacidade de acelerar mais. É nessa hora que o EM Drive, em tese, brilharia. Como ele não usa combustível, poderia acelerar indefinidamente — é o famoso “devagar e sempre”.
Uma tecnologia avançada e recente que mistura um pouco de cada coisa — usa combustível, mas é econômica, e tem empuxo fraco, porém duradouro — é a chamada propulsão iônica. Ela já foi usada com sucesso em algumas espaçonaves, como a sonda Dawn, que está neste momento explorando o planeta anão Ceres, no cinturão de asteroides.
White compara o desempenho do EM Drive medido no laboratório deles com o de um propulsor iônico de última geração. Enquanto cada quilowatt de eletricidade gera 1,2 milinewton de impulso com o EM Drive, um motor de íons geraria 60 milinewtons. Ou seja, uma tecnologia como a embarcada na Dawn é umas 50 vezes melhor que esse EM Drive aí.
E a Dawn, não custa lembrar, levou quatro anos para ir da Terra até o cinturão de asteroides, que fica aquém da órbita de Júpiter — logo ali na esquina, se estamos sonhando em voo interestelar.
Então, importante, pelo menos no momento, a gente não se prender muito a números incríveis que têm sido atirados por aí, como ir à Lua em quatro horas, a Marte em 70 dias e a Plutão em 18 meses. Calma lá.
De onde a galera tira esses números, então?
De uma extrapolação que White e sua equipe fizeram em outro momento, supondo que se pudesse chegar a um nível de propulsão de 0,4 newtons por quilowatt — um desempenho pouco mais de 300 vezes maior que o medido.
Com esse mesmo desempenho, ir até Proxima Centauri, a estrela mais próxima, a 4,25 anos-luz, levaria 122 anos. Se fosse possível melhorar o desempenho por um fator de dez, para 4 newtons por quilowatt, a viagem levaria 29,9 anos.
Legal, né? Mas é 4.000 vezes mais do que o desempenho medido, e esse desempenho ainda pode nem ser real!
Moral da história: ainda temos um longo caminho a percorrer.
A boa notícia é que, como nem sabemos como isso poderia funcionar, no momento em que descobrirmos, teremos capacidade de projetar essas coisas para funcionarem com mais eficiência. E aí talvez descubramos que é possível fazer esse salto de 4.000 vezes no desempenho.
Por ora, no entanto, a aposta mais segura para missões interestelares é a tecnologia de velas com propulsão a laser, desenvolvida pelo projeto Breakthrough Starshot. Pelo menos, ela não envolve nenhuma física maluca. E, de toda forma, é muito legal vermos diferentes alternativas aparecendo. Sinal de que, cedo ou tarde, vamos matar essa charada e descobrir como viajar entre as estrelas.
Quem sabe até mais depressa que a própria luz? Harold White também trabalha numa linha de pesquisa que tenta criar uma dobra espacial, encolhendo a distância entre dois pontos, à moda de “Star Trek”. Mas o progresso aí é ainda mais lento que o dos EM Drives. Ou seja, não prenda a respiração.
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- November 22nd, 2016
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