por Jessé Souza, em El País
Jair Bolsonaro é hoje, dentre os poucos chefes de Estado no mundo a negar os perigos da pandemia do coronavírus, o mais ousado e irresponsável. Todo dia o esforço de resguardar a população é sabotado pelo chefe da nação. Dificuldades burocráticas são criadas artificialmente para impedir que a ajuda chegue aos mais necessitados e o presidente joga tudo no caos e no conflito. A pandemia é relegada a um lugar secundário em relação à sobrevivência política do clã envolvido até o pescoço em todo tipo de suspeita, desde falcatruas variadas até assassinatos. Com sua patológica falta de empatia humana, Bolsonaro diz que quem vai morrer iria morrer de qualquer jeito mesmo, se referindo a idosos e pessoas com doenças crônicas, e que a morte de alguns milhares não pode parar a economia.
No entanto, o que mais chama atenção é o fato de que, embora sua popularidade tenha declinado nas hostes da classe média mais esclarecida, como mostram pesquisas e os “panelaços” nos bairros mais ricos, sua popularidade continua inabalável. Bolsonaro mantêm sólido apoio de cerca de 25% a 30% do eleitorado, acima de tudo nas classes populares evangélicas, o que o permite manter a profunda divisão política do país e a continuidade da agenda neoliberal turbinada de destruição do Estado e da constituição “socialdemocrata” de 1988.
Em um período de crise aguda como esta, onde é necessário acalmar a população e se sensibilizar com a dor do próximo, Bolsonaro mostra sua incapacidade patológica de qualquer empatia humana. Ele só reage à mentira, à intriga, à briga constante. Ele aprendeu com Steve Bannon e com seu aprendiz de feiticeiro brasileiro, Olavo de Carvalho, o “guru intelectual” de Bolsonaro e de seus filhos, que o ódio e o ressentimento são as emoções humanas mais fortes. Se você tem acesso a uma máquina de fake news como o WhatsApp e dinheiro para mantê-la, você pode, pela simples manipulação do ódio, manter seu eleitorado cativo sem oferecer, materialmente, nada em troca. Pior ainda, neste momento, ele incita seus seguidores mais leais a agirem do mesmo modo irresponsável que ele. Como explicar tamanha insanidade coletiva?
Por trás de todo comportamento social abertamente irracional baseado no ódio está alguma forma de racismo. E a sociedade brasileira é a campeã do mundo quando se trata de revestir seu racismo em vestes douradas e reluzentes. Como o racismo aberto no Brasil foi tornado impossível pelo sucesso da ideologia da mestiçagem a partir dos anos 1930, do elogio ao “povo mestiço” de Gilberto Freyre e de Getúlio Vargas, o racismo no Brasil vai passar a ser exercido por interposta pessoa. Que a classe média nunca se importou verdadeiramente com a corrupção ―basta lembrar que nenhuma alma branca, privilegiada e bem vestida saiu às ruas gritando histericamente contra a corrupção, como havia feito contra o PT, quando a TV mostrou a todos as malas de dinheiro e as alusões a assassinato de Aécio e Temer, respectivamente, o candidato e o presidente da oposição conservadora. Como é o comportamento que diz quem as pessoas são, e não o que elas dizem da boca para fora, o que anima o espírito da classe média? O que está por trás da máscara de grandeza moral que não pode dizer seu nome?
Ora, como no Brasil o racismo não pode dizer seu nome (nem Bolsonaro se admite racista), a saída perfeita é transformar o afeto racista em virtude, possibilitando sua moralização sob a forma do “combate à corrupção”. Como são sempre pobres e negros que votam em partidos populares, a pecha de corrupto ou de apoiar político corrupto permite criminalizar a soberania popular enquanto tal e legitimar golpes de Estado. Permite também metamorfosear o ódio racista transformando, de lambuja, o racista das classes altas e brancas em campeão da moralidade. Desde 1930 esta é a regra de ouro da política brasileira.
Bolsonaro construiu sua campanha se alimentando do racismo reprimido brasileiro em duas frentes: o racismo travestido de falso moralismo das classes superiores contra os pobres e qualquer tentativa de ascensão social dos mesmos, precisamente o que Lula representava, e contra o “delinquente” das classes populares. O racismo também é a energia e o afeto principal aqui. Do mesmo modo que o racismo da classe média contra o povo se traveste de moralismo anticorrupção, o racismo do “pobre remediado”, evangélico e conservador, que foi a principal base de apoio a Bolsonaro, traveste seu racismo em luta contra o crime, sendo a delinquência percebida como atributo do negro pobre. Todo brasileiro sabe, afinal, por experiência que quem morre nas mãos da polícia é o jovem negro das favelas. São milhares a cada ano. Uma verdadeira guerra civil onde só se morre de um lado.
No contexto das classes populares, o racismo mascarado brasileiro é tornado possível pela metamorfose que opõe o “pobre honesto” ao “pobre delinquente”. O delinquente é o “bandido”, que pode ser o simples usuário ou pequeno vendedor de maconha, por exemplo, no caso do homem, e da “prostituta” se for mulher. São empregos de quem não tem chance de ter acesso a outra coisa e todos são pobres e a maioria é negra. O homossexual de ambos os sexos é a outra figura paradigmática do “delinquente”.
O bolsonarista das classes populares ganha entre dois e cinco salários mínimos e é muitas vezes o imigrante europeu branco pobre que não ascendeu, como a própria família de Bolsonaro, filho de imigrantes italianos pobres do Estado de São Paulo. São Paulo e o Sul do Brasil concentram a imigração europeia de italianos, alemães e eslavos. Bolsonaro teve mais de 70% dos votos desta região, ao passo que apenas 30% dos votos do Nordeste mestiço e negro. Sem ter acesso aos privilégios educacionais da classe média branca e privilegiada que comanda o mercado e o Estado em nome da elite econômica, muitos entre eles seguem o caminho de Bolsonaro e entram nas fileiras das patentes médias e baixas do exército e das polícias militares.
Bolsonaro é o líder do “lixo branco” brasileiro, que obviamente abrangem os negros que se identificam com o opressor e negam o racismo, como o presidente da fundação Palmares. Um segmento ressentido com a classe média branca e estabelecida, e que apoia, portanto, a cruzada de Bolsonaro contra a ciência, a pesquisa, a arte, a universidade pública e o conhecimento. Como o “conhecimento” e o capital cultural, o fundamento do privilégio da alta classe média, é percebido, na dimensão intuitiva e afetiva, pelo “lixo branco”, como as causas de sua inferioridade social, seu apoio à cruzada obscurantista é total. Contra os pobres e negros abaixo dele socialmente é possível compensar e canalizar sadicamente o sentimento de inferioridade sob a forma do genocídio dos jovens negros e repressão de qualquer expressão religiosa, cultural e política dos negros e dos pobres.
Neste sentido, a possibilidade de uma catástrofe sanitária nas favelas e bairros mais pobres, onde as famílias se amontam em espaços ínfimos e sem condições de higiene, se mostra como uma possibilidade efetiva. Bolsonaro, inclusive, atrasa e cria dificuldades burocráticas para a ajuda emergencial decidida recentemente pelo Congresso aos mais pobres de pouco mais de 600 reais ao mês pelos próximos três meses. Seja pelo alastramento da covid-19, seja pela fome e desespero de uma população deixada a míngua e sem assistência, a aposta no caos é um cálculo político do Bolsonarismo. Bolsonaro busca ansiosamente um pretexto para produzir um caos social que possa legitimar uma reação armada das milícias e do Exército e um fechamento do regime político.
Um golpe evangélico-miliciano-militar, parecido com o que aconteceu na Bolívia em 2019, seria a salvação de Bolsonaro e sua família acuada por múltiplas acusações de corrupção e, inclusive, de ligação suspeita com assassinato, como o caso da vereadora Marielle Franco, que ronda cada vez mais de perto sua família. A crise sanitária da covid-19 no Brasil pode tanto acelerar um golpe de Estado mafioso-religioso, quanto a queda de Bolsonaro e de sua popularidade, mantida por fake news e pela manipulação do ancestral e reprimido racismo brasileiro.
Jessé Souza é doutor em Sociologia, com pós doc em psicanálise e filosofia. É autor de mais de 20 livros.
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