Numa data marcada pela celebração da ressurreição, o vazio das igrejas escancara a necessidade urgente de um novo pacto social
The Battle for Christmas: A Social and Cultural History of Our Most Cherished Holiday, relata como a festa de final de ano foi secularizada e transformada praticamente em um feriado burguês. A festa ainda passou a se desenvolver de mãos dadas com um “novo” fenômeno: a ascensão de uma classe média a partir do século 19 e a celebração da infância.
Ainda que os tetos de supermercados sejam tomados por ovos de chocolate, a realidade é que a Páscoa e seu sentido de ressurreição não tiveram o mesmo destino do Natal. Em compensação, elas mantiveram o significado teológico preservado.Neste ano, tal evento religioso ocorre em igrejas vazias, salvo em alguns rincões de radicais que se recusam a acreditar na ciência. O vazio não ocorre pela falta de fé, transferidas para redes sociais e grupos de WhatsApp. Mas por culpa de uma pandemia que levou religiosos e agnósticos a buscar um sentido para o momento de transição no planeta.
Enquanto bilhões de pessoas estão confinadas, governosbuscam formas para sair da crisee retomar a normalidade. Descobrimos que existe um enorme vácuo de liderança e que, mesmo na crise definidora de nossa geração, políticos mergulham na busca por poder e influência global.
Lenta e descoordenada, a comunidade internacional eventualmente conseguirá chegar a um plano de ação. Provavelmente tardio. A incapacidade de agir de uma maneira mais eficiente custará muitas vidas. Já são mais de 100.000 mortos.Mais cedo ou mais tarde, a retomada virá e pacotes avaliados em mais de 5 trilhões de dólares já foram anunciados por governos para resgatar suas economias e, em alguns casos, seus trabalhadores. A meta de todos: voltar à normalidade.
Mas será que convém ao mundo retornar a tal situação pré-pandemia?A “normalidade" consistia em aceitar que cerca de 4 bilhões de pessoas não estavam cobertas por quaisquer medidas de proteção social.A “normalidade” significava que 821 milhões de pessoas ―aproximadamente uma em cada nove pessoas no mundo― estavam subnutridas. Depois de anos de queda, a curva da fome voltou a aumentar no mundo desde 2015.
19,9 milhões de crianças não receberam vacinas durante o primeiro ano de vida. Em 40% dos países do mundo, existiam menos de 10 médicos por cada 10.000 pessoas.Apenas 60% das pessoas em todo o mundo contavam com uma pia, com sabão e água, em casa. Ou seja, 3 bilhões de pessoas viviam sem instalações básicas para simplesmente lavar as mãos em casa.
Um terço de todas as escolas primárias carecia de água potável, saneamento e serviços de higiene. Uma em cada quatro centros de saúde no mundo não tinha água.Como ousam, portanto, falar em voltar à normalidade?Pacotes para sair ao resgate de milhões de pessoas serão necessários. Mas não darão conta de transformar às condições de base que deram, justamente, uma avenida para que a pandemia tomasse a dimensão que ganhou.
Abreviando a vida de milhares de pessoas e se transformando num espelho de um modelo de mundo esgotado, a morte anunciada em forma de números revelou a profunda vulneralibilidade do planeta. Ninguém mais pode dizer que tem um sistema de saúde sólido. Ninguém.
O inimigo invisível nos exige fazer perguntas incômodas. Não vamos precisar de pacotes de resgate. Mas um plano de ressurreição, que exigirá a humildade de líderes, planos, dinheiro e novas prioridades. Vai exigir coordenação entre países rivais, partidos rivais, ideologias rivais.
Enfim, um novo pacto social, capaz de conduzir o mundo a um compromisso para reduzir suas desigualdades. Caso contrário, estaremos apenas estabelecendo uma nova base para a próximapandemia.“Os seus mortos viverão. Os cadáveres do meu povo se levantarão”, diz um dos versículos do Livro de Isaias. “E a terra deixará que os impotentes na morte voltem a viver”.
Os impotentes na morte são os bilhões de seres humanos que, ainda que vivos, estão num limbo existencial permanente. Uma prisão perpétua, onde a única liberdade que têm é a de morrer.Não há como aceitar voltar à “normalidade”.Jamil Chadeé correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance
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