"Há um usuário novo, uma notícia nova, um novo recurso. Alguém fez algo, publicou algo, enviou uma foto de algo, rotulou algo. Você tem cinco mensagens, vinte curtidas, doze comentários, oito retweets. (...) As pessoas que você segue seguem esta conta, estão falando sobre este tópico, lendo este livro, assistindo a este vídeo, usando este boné, comendo esta tigela de iogurte com mirtilos, bebendo este drinque, cantando esta música."
O cotidiano digital descrito pela jornalista espanhola Marta Peirano,
autora do livro El enemigo conoce el sistema (O inimigo conhece o
sistema, em tradução livre), esconde na verdade algo nada trivial: um
sequestro rotineiro de nossos cérebros, energia, horas de sono e até da
possibilidade de amar no que ela chama de "economia da atenção", movida
por tecnologias como o celular.
Nesse ciclo, os poderosos do sistema enriquecem e contam com os
melhores cérebros do mundo trabalhando para aumentar os lucros enquanto
entregamos tudo a eles.
"O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você oferece em troca", diz a jornalista.
Desde os anos 90, quando descobriu a cena dos hackers em Madri, até
hoje, ela não parou de enxergar a tecnologia com um olhar crítico e
reflexivo. Seu livro narra desde o início libertário da revolução
digital até seu caminho para uma "ditadura em potencial", que para ela
avança aos trancos e barrancos, sem que percebamos muito.
Marta Peirano foi uma das participantes do evento Hay Festival
Cartagena, um encontro de escritores e pensadores que aconteceu na
cidade colombiana entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro. A seguir, leia a
entrevista concedida à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
BBC News Mundo - Você diz que a 'economia da atenção' nos rouba horas de sono, descanso e vida social. Por quê?
Marta Peirano -
A economia da atenção, ou o capitalismo de vigilância, ganha dinheiro
chamando nossa atenção. É um modelo de negócios que depende que
instalemos seus aplicativos, para que eles tenham um posto de vigilância
de nossas vidas. Pode ser uma TV inteligente, um celular no bolso, uma
caixinha de som de última geração, uma assinatura da Netflix ou da Apple.
E eles querem que você os use pelo maior tempo possível, porque é assim que você gera dados que os fazem ganhar dinheiro.
BBC News Mundo - Quais dados são gerados enquanto alguém assiste a uma série, por exemplo?
Peirano -
A Netflix tem muitos recursos para garantir que, em vez de assistir a
um capítulo por semana, como fazíamos antes, você veja toda a temporada
em uma maratona. Seu próprio sistema de vigilância sabe quanto tempo
passamos assistindo, quando paramos para ir ao banheiro ou jantar, a
quantos episódios somos capazes de assistir antes de adormecer. Isso os
ajuda a refinar sua interface.
Se chegarmos ao capítulo quatro e formos para a cama, eles sabem que
esse é um ponto de desconexão. Então eles chamarão 50 gênios para
resolver isso e, na próxima série, ficaremos até o capítulo sete.
BBC News Mundo - Os maiores cérebros do mundo trabalham para sugar nossa vida?
Peirano -
Todos os aplicativos existentes são baseados no design mais viciante de
que se tem notícia, uma espécie de caça-níquel que faz o sistema
produzir o maior número possível de pequenos eventos inesperados no
menor tempo possível. Na indústria de jogos, isso é chamado de
frequência de eventos. Quanto maior a frequência, mais rápido você fica
viciado, pois é uma sequência de dopamina.
Toda vez que há um evento, você recebe uma injeção de dopamina — quanto
mais eventos encaixados em uma hora, mais você fica viciado.
BBC
News Mundo - Todo tuíte que leio, todo post no Facebook que chama minha
atenção, toda pessoa no Tinder de quem gosto é um 'evento'?
Peirano - São
eventos. E na psicologia do condicionamento, há o condicionamento de
intervalo variável, no qual você não sabe o que vai acontecer. Você abre
o Twitter e não sabe se vai retuitar algo ou se vai se tornar a rainha da sua galera pelos próximos 20 minutos.
Não sabendo se receberá uma recompensa, uma punição ou nada, você fica viciado mais rapidamente.
'Todos os aplicativos existentes são baseados no design mais viciante de que se tem notícia', diz Marta Peirano
BBC
News Mundo - Os adultos podem entender isso, mas o que acontece com as
crianças que apresentam sintomas de abstinência quando não estão
conectadas ao Instagram, YouTube, Snapchat, Tik Tok por exemplo?
Peirano - As
redes sociais são como máquinas caça-níqueis, quantificadas na forma de
curtidas, corações, quantas pessoas viram seu post. E isso gera um
vício especial, porque trata-se do que a sua comunidade diz — se o
aceita, se o valoriza. Quando essa aceitação, que é completamente
ilusória, entra em sua vida, você fica viciado, porque somos
condicionados a querer ser parte do grupo.
Eles [as empresas] conseguiram quantificar essa avaliação e
transformá-la em uma injeção de dopamina. As crianças ficam viciadas?
Mais rápido do que qualquer um. E não é que elas não tenham força de
vontade, é que elas nem entendem por que isso pode ser ruim.
Não deixamos nossos filhos beberem Coca-Cola e comer balas porque
sabemos que o açúcar é prejudicial; mas damos a eles telas para serem
entretidos, porque dessa forma não precisamos interagir com eles.
BBC News Mundo - E o que podemos fazer?
Peirano - Interagir
com elas. Uma criança que não tem uma tela fica entediada. E uma
criança entediada pode ser irritante, se você não estiver disposto a
interagir com ela, porque talvez você prefira estar fazendo outras
coisas.
BBC News Mundo - Olhando para sua própria tela, por exemplo?
Peirano - Vemos
famílias inteiras ligadas ao celular e o que está acontecendo é que
cada um está administrando seu próprio vício. Todo mundo sabe que os
jogos de azar são ruins, que a heroína é ruim, mas o Twitter, o Facebook, não — porque eles também se tornaram ferramentas de produtividade.
Então, eu, que sou jornalista, quando entro no Twitter é porque preciso me informar; a cabeleireira no Instagram estará assistindo a um tutorial; há uma desculpa para todos.
O vício é o mesmo, mas cada um o administra de maneira diferente. E
dizemos a nós mesmos que não é um vício, mas que estamos ficando
atualizados e mais produtivos.
BBC News Mundo - Poderíamos nos caracterizar como viciados em tecnologia?
Peirano -
Não somos viciados em tecnologia, somos viciados em injeções de
dopamina que certas tecnologias incluíram em suas plataformas. Isso não é
por acaso, é deliberado.
Há um homem ensinando em Stanford (universidade) àqueles que criam startups para gerar esse tipo de dependência.
Existem consultores no mundo que vão às empresas para explicar como
provocá-la. A economia da atenção usa o vício para otimizar o tempo que
gastamos na frente das telas.
Peirano diz que todos estamos viciados, mas cada um administra — e
justifica — seu vício de uma maneira diferente
BBC
News Mundo - Como você fala no livro, isso também acontece com a
comida, certo? Somos manipulados por cheiros, ingredientes, e nos
culpamos por falta de vontade e autocontrole (na dieta, por exemplo).
Peirano - É quase um ciclo de abuso, porque a empresa contrata 150 gênios para criar um produto que gera dependência instantânea.
Seu cérebro é manipulado para que a combinação exata de gordura, açúcar
e sal gere uma sensação boa, mas como isso [a combinação] não nutre o
corpo, a fome nunca passa, e você experimenta um tipo de curto-circuito:
seu cérebro está pedindo mais, porque é gostoso, mas o resto do seu
corpo diz que está com fome.
Como no anúncio da Pringles, "Once you pop, you can't stop" [depois que
você abre, não consegue parar, em tradução livre]. O que é
absolutamente verdade, porque abro um pote e até que eu o coma inteiro,
não consigo pensar em outra coisa.
Então, dizem: 'bem, isso é porque você é um glutão'. O pecado da gula!
Como você não sabe se controlar, vou vender um produto que você pode
comer e comer e não fará você engordar, os iogurtes light, a Coca-Cola
sem açúcar.
E a culpa faz parte desse processo. No momento, no Vale do Silício,
muitas pessoas estão fazendo aplicativos para que você gaste menos tempo
nos aplicativos. Esse é o iogurte.
BBC News Mundo - Essa conscientização, de entender como funciona, ajuda? É o primeiro passo?
Peirano - Acho que sim. Também percebo que o vício não tem nada a ver com o conteúdo dos aplicativos.
Você não é viciado em notícias, é viciado em Twitter; não é viciado em
decoração de interiores, é viciado em Pinterest; não é viciado em seus
amigos ou nos seus filhos maravilhosos cujas fotos são postadas, você é
viciado em Instagram.
O vício é gerado pelo aplicativo e, quando você o entende, começa a
vê-lo de maneira diferente. Não é falta de vontade: eles são projetados
para oferecer cargas de dopamina, que dão satisfação imediata e afastam
de qualquer outra coisa que não dá isso na mesma medida, como brincar
com seu filho, passar tempo com seu parceiro, ir para a natureza ou
terminar um trabalho — tudo isso exige uma dedicação, já que há
satisfação, só que não imediata.
BBC News Mundo - De tudo o que você cita, manipulações, vigilância, vícios, o que mais a assusta?
Peirano -
O que mais me preocupa é a facilidade com que as pessoas estão
convencidas a renunciar aos seus direitos mais fundamentais e a dizer:
quem se importa com meus dados? Quem se importa com onde eu estive?
Há 40 anos, pessoas morriam pelo direito de se encontrar com outras
pessoas sem que o governo soubesse suas identidades; pelo direito de ter
conversas privadas ou pelo direito de sua empresa não saber se há uma
pessoa com câncer em sua família.
Custou-nos muito sangue para obtê-los (os direitos) e agora estamos
abandonando-os com um desprendimento que não é natural — é implantado e
alimentado por um ecossistema que se beneficia dessa leveza.
BBC
News Mundo - Quando você envia um email, sabe que outros podem lê-lo,
mas de fato pensamos: quem se importará com o que eu escrevo?
Peirano - Ninguém
realmente se importa, até o momento que se importe, porque todo esse
material é armazenado e, se estiver disponível para o governo, ele terá
ferramentas para contar qualquer história sobre você. E você não poderá
refutá-lo.
Se o governo quiser colocá-lo na cadeia porque você produz um material
crítico, ele pode encontrar uma maneira de vinculá-lo a um terrorista.
Bem, talvez seus filhos tenham estudado juntos por um tempo e possa ser
mostrado que as placas dos seus carros coincidiram várias vezes na mesma
estrada por três anos. Nesse sentido, seus dados são perigosos.
O vício em aplicativos não tem a ver diretamente com o conteúdo deles,
mas com seu design, que desperta injeções de dopaminas
BBC
News Mundo - Você diz no livro que "2,5 quintilhões de dados são
gerados todos os dias", incluindo milhões de e-mails, tuítes, horas de
Netflix e pesquisas no Google. O que acontece com tudo isso?
Peirano - Estamos
obcecados com nossos dados pessoais, fotos, mensagens... Mas o valor de
verdade é estatístico, porque suas mensagens, com as de outras bilhões
de pessoas, informam a uma empresa ou a um governo quem somos
coletivamente.
Eles os usam primeiro para os anunciantes. E depois para criar previsões, porque este é um mercado de futuros.
Eles sabem que quando, em um país com certas características, o preço
da eletricidade sobe entre 12% e 15%, acontece X; mas, se sobe entre 17%
e 30%, outra coisa Y acontece. As previsões são usadas para manipular e
ajustar suas atividades — para saber, por exemplo, até onde você pode
prejudicar a população com o preço das coisas antes ela se revolte
contra você ou comece a se suicidar em massa.
BBC
News Mundo - Como o que aconteceu no Chile, com manifestações motivadas
inicialmente pelo aumento no preço da passagem do metrô..?
Peirano -
Talvez o governo chileno não esteja processando dessa maneira, mas o
Facebook está, o Google está — porque todas as pessoas na rua têm o
celular no bolso. E elas o carregaram durante os últimos anos de sua
vida.
O
Facebook sabe em que bairros aconteceu o que e por quê; como as pessoas
se reúnem e como se dispersam; quantos policiais precisam chegar para
que a manifestação se dissolva sem mortes.
BBC News Mundo - Mas quem está disposto a ficar sem o celular, a internet? Qual é o caminho para o cidadão normal?
Peirano -
O problema não é o celular, não é a internet. Todas as tecnologias das
quais dependemos são ferramentas da vida contemporânea, voluntariamente
as colocamos em nossos celulares. Mas elas não precisam da vigilância
para funcionar, nem precisam monitorar você para prestar um serviço.
Eles não precisam disso, o que acontece é que a economia de dados é
muito gulosa.
BBC News Mundo - Os negócios são tão lucrativos que vão continuar a fazê-lo da mesma maneira ainda que tentemos impor limites?
Peirano - É
muito difícil para um governo enfrentar tecnologias que facilitam esse
controle populacional, que é interessante. Mas a ideia é exigir que isso
aconteça.
Se, agora, você desativar todos os sistemas de geolocalização do seu celular, eles continuarão a geolocalizá-lo.
Assim como no Facebook ou no Twitter, em que você pode bloquear o que
posta para algumas pessoas ou para todos — somente você... e o Facebook
veem. O que acontece nos centros de dados deles, acontece para você e
para eles. Você não pode bloquear o Facebook, porque você está no
Facebook.
'Se, agora, você desativar todos os sistemas de geolocalização do seu
celular, eles continuarão a geolocalizá-lo', alerta jornalista espanhola
BBC News Mundo - Você está sugerindo que precisamos nos rebelar e exigir privacidade?
Peirano - Mas não contra empresas. É natural que elas se beneficiem de uma fonte de financiamento tão barata e gloriosamente eficaz.
O que não é natural é que um governo destinado a proteger os direitos
de seus cidadãos o permita. E a questão é que cada vez mais governos
chegam ao poder graças a essas ferramentas.
Então, o que deve ser feito? Precisamos começar a transformar essa
questão fundamental em um debate política nos níveis local e mais amplo,
ou seja, em ação coletiva, ação política.
BBC News Mundo - Esse debate está acontecendo em algum lugar do mundo?
Peirano -
Nas primárias democratas da campanha presidencial dos EUA deste ano,
essa é uma das questões cruciais. Está em debate se essas empresas devem
ser gerenciadas de outra maneira ou serem fragmentadas, porque além de
tudo também são um monopólio.
No entanto, na Europa e na América Latina, nos cansamos de falar sobre
notícias falsas, seus efeitos, campanhas tóxicas... Na Espanha, houve
três eleições gerais em três anos e nenhum político fala sobre isso.
BBC News Mundo - O sistema é nosso inimigo, então?
Peirano - Somos integrados a e dependemos de sistemas que não sabemos como funcionam ou o que querem de nós. Facebook, Google
e outros dizem que querem que nossa vida seja mais fácil, que entremos
em contato com nossos entes queridos, que sejamos mais eficientes e
trabalhemos melhor, mas o objetivo deles não é esse, eles não foram
projetados para isso, mas para sugar nossos dados, nos manipular e
vender coisas.
Eles nos exploram e, além disso, somos cada vez menos felizes e menos produtivos, porque somos viciados [na tecnologia].
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